Visivelmente entendemos que o ser humano constitui boa parte do mundo que habitamos, ou seja, a maioria dos habitantes do planeta Terra é constituída de gente como nós, com necessidades semelhantes.
Quando vemos o discurso de muitas pessoas em relação ao sentimento de piedade, de caridade em relação ao seu próximo, nos deparamos com o conceito de alteridade sendo propagada de forma textual, porém, a alteridade no discurso é fácil de compreender, mas difícil de aplicar.
Alteridade é a capacidade de se colocar no lugar do outro, de penetrar no mundo do outro e conseguir vê-lo tal como ele é e não como desejaríamos que fosse.
Na era moderna (1600 d. C.) já se percebe uma preocupação sobre o tema, pois em pleno renascimento cultural na Europa, vemos a busca da racionalidade do homem, e da mudança da importância da religião para a figura humana da sociedade, o homem com suas necessidades mais urgentes e não mais a figura da religião como fator principal da sociedade. O homem renascentista acreditava que a religião vigente na Europa havia corrompido a forma de pensar o mundo, o homem e sua relação com a divindade. É fácil de entender isso, pois a visão cristã do período medieval, por exemplo, era a centralização em Deus (dentro de uma visão antropomórfica) e não no homem. O homem era problema de Deus. Ele que deveria conceder ou não as benesses aos seus filhos.
Com o pensamento espírita sendo propagado em pleno século XIX, em um país onde o racionalismo fora propagado de forma contundente e o sentimento religioso descartado como manifestação de uma postura retrógrada e nociva ao desenvolvimento do homem, como ser humano livre de amarras intelectuais. A proposta de Allan Kardec, que tivera educação positivista, dentro do perfil racionalista, científico, herdado do renascimento cultural, rompeu com isso e resgata através de sua postura em publicar “O Evangelho segundo o Espiritismo”, um cristianismo dentro de seus conceitos filosóficos e religiosos aos moldes do que foi proposto pelo Cristo na Palestina.
Para os Espíritos que sustentaram toda a obra Kardequiana a relação entre o ser humano deveria estar dentro do conceito da alteridade. A visão do ser humano e suas necessidades mais importantes, para ter importância no quadro de valores de uma sociedade justa, deveriam estar baseadas no conceito de alteridade.
Embora essa questão seja uma marca indelével na codificação Kardequiana, esse princípio de se colocar no lugar do outro, de compreender o mundo dos outros, tal como ele é e não como pensamos ou desejamos que seja, ficou em plano secundário, pois era um sentimento mais desperto em espíritos mais maduros, mais sensíveis à dor alheia. Tínhamos um espiritismo para intelectuais, mais ao gosto do positivismo francês que permeou a formação intelectual em nossa pátria no período da república.
O período que antecede a década de 1940, podemos ver um Espiritismo estagnado, disperso, de interesse em questões fenomenológicas como as materializações ou mesmo o auxílio social. Com a reestruturação da Federação Espírita do Estado de São Paulo (FEESP) através das várias ações de Edgard Armond, seu administrador, o Espiritismo começa assumir uma forma mais ampla.
Toda a trajetória da FEESP a partir de 1940 deve ser relembrada como um divisor de águas dentro do Movimento Espírita Nacional, pois antes mesmo do período de implantação dos programas elaborados por Edgard Armond, nota-se que antecedendo à década de 1940 a Doutrina Espírita não tinha nenhum tipo de reconhecimento social e as instituições existentes, não eram unidas; não possuíam orientação para que dinamizassem suas atividades, contando assim, com a boa vontade de quem as comandava. Porém, a criação da Escola de Aprendizes do Evangelho em 6 de maio de 1950, representa o marco inicial de uma profunda transformação na maneira de se vivenciar o Espiritismo no Brasil.
Com este projeto de iniciação em massa, Armond populariza um sistema de espiritualização em que o homem desenvolve, através de programas de trabalho, seu potencial humano de se importar consigo mesmo, sua evolução espiritual e isso leva a uma atitude de alteridade, pois no processo de evolução espiritual, no autodescobrimento, o homem começa a se ver no outro, se identificar com o outro através das diversas experiências. A dor é uma dessas experiências. Embora ela seja uma experiência individual, privada, pois o outro não tem acesso à ela, mas através de sua própria experiência e dos conhecimentos que adquire, ele sabe o quanto é difícil vivê-la. A proposta da Escola de Aprendizes do Evangelho ensina ao aluno que o fato de falar da sua dor diante da dor alheia, não é o suficiente para compreendê-la no outro, pois muitas vezes isso se torna uma postura egoísta. A questão é de identificação da dor entendendo que embora humanos, temos reações diferentes diante dos desafios da vida. E é nesta diferença que aprendemos a sermos solidários uns com os outros. Somo iguais na essência, mas com experiências e maturidade diferentes, o que não nos torna maior nem menor, porém diferentes no processo de evolução e a nossa utilidade para o próximo está justamente não naquilo que temos em comum, mas sim, no que nos diferencia, pois o que nos diferencia nos completa.
Este conceito está diluído na obra Kardequiana, porém, mais especificamente em “O Evangelho segundo o Espiritismo”, mas depende muito mais de uma atitude de espíritos mais maduros para o processo de compreensão, embora a questão 919 de “O Livro dos Espíritos” seja objetiva, não competia a Kardec lançar métodos que facilitasse colocar em prática as diversas possibilidades de transformações do ser humano.
Portanto é com Edgard Armond que o Espiritismo sai de seu aspecto positivista, somente científico e filosófico, muitas vezes friamente propagado, para adentrar num aspecto mais pragmático, mais objetivo no sentido de oferecer ao ser humano uma escola de reforma íntima, com metodologia própria, levando o ser humano às portas, não somente de uma iniciação científica e filosófica, mas impreterivelmente a uma iniciação espiritual onde a alteridade é um dos seus componentes fundamentais.